Crónica de Alexandre Honrado
Fotos e espelhos
Guardo fotos, coleciono-as sempre que posso, algumas vindas das mais inesperadas origens. Fotos de família, tentando adivinhar como sentiam o quotidiano os entes que me antecederam e que, pela data de nascimento e partida não cheguei a conhecer pessoalmente. É um repositório sensações e detalhes, uma revisitação, um modo ingénuo de devolver vida a pessoas e eras, a pensamentos e gostos.
Coleciono ainda fotos de gente anónima, muitas vezes encontradas em arquivos deitados ao lixo e a qualquer outro desprezo, pois há quem não faça da memória uma coisa de interessar.
Tento reabilitar o que posso, fazendo cópias das imagens mais esbatidas, dando-lhes a dimensão virtual dos computadores e seus recursos.
Por vezes, invento histórias para essas imagens, para essas pessoas, afinal tenho o descaramento de ver em cada personagem real um manancial de ficção, somos todos personagens das nossas histórias, motivadores de interpretações alheias, partilhamos palcos e por vezes uma vida inteira não chega para um aplauso mesmo débil. Somos o que legámos, o que imaginámos, o que fizemos e o que constituímos como símbolos e heranças.
Componho álbuns e pastas de arquivo, tento investigar sobre cenários, trajos, poses, enquadramentos, casas de fotógrafos profissionais que já desapareceram, métodos de fotografar que já não se usam.
Leio tudo sobre o assunto: Fotografia do grego photos, “luz”, e graphos, “gravação”) é um processo técnico pelo qual se obtém o registo de uma imagem mediante a ação da luz sobre uma superfície (chapa, filme ou papel) revestida de uma camada de sais de prata, que são sensíveis à luz. Por extensão, inclui-se a formação de imagens que resultam da ação de certas radiações invisíveis (raios ultravioleta e infravermelhos) e imagens registradas em outros materiais sensíveis que não contêm prata, por meio de processos químicos ou físicos ou ambos, combinados. Outras técnicas relacionam-se com o processo fotográfico, como o registo de imagens por raios X, feixes eletrónicos e radiações nucleares e a gravação e transmissão de imagens luminosas estáticas ou dinâmicas, na forma de sinais eletromagnéticos (televisão e videotape).
Separo ainda fotos que me aparecem pelo caminho, algumas relacionadas com trabalhos ou matérias de estudo, aqui na minha mesa tenho o Marcel Duchamp, pintor, escultor e poeta francês, fotografado pelo Irving Penn. Duchamp escandalizou o mundo erudito, no ano de 1917, ao expor como peça de arte um urinol, sob o título Fonte, o que parece um pouco contraditório, não se urina exatamente num chafariz, embora sem a sua água as coisas fiquem anormalmente desagradáveis. Cismo: que chocante seria hoje um urinol numa sala de exposições? Uma banalidade, entre tantas outras.
Na mesma enorme caixa onde tenho a foto de Duchamp, fotografado, de fato completo, cachecol e cachimbo, a um canto de um espaço exíguo, tão estreito que apenas seria capaz de acolher a sua magreza elegante, tenho centenas de fotos, todas do ano de 1917.
Detenho-me noutra. É a de um jovem artilheiro da Grande Guerra (1914-1918).
A legenda é brutal e todavia de uma eficácia sóbria e substantiva: Segundo Tenente J. H. Claughton, desaparecido a 30 de novembro de 1917.
A idiotice humana ceifa sempre o seu próprio futuro. As guerras levam os que nos podia trazer a renovação, o progresso, a paz. A guerra é o recurso dos cobardes e dos derrotados.
Vejo fotos antigas, desbotadas, esvaindo-se em sangue sépia, marcadas e manuseadas – vejo-as demoradamente, como se todas e cada uma fossem os meus espelhos mais intensos.
Alexandre Honrado
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